sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Avenida Borá




- Quem matou o Max foi...pufff

Enquanto o país inteiro acabara de desvendar o mistério do assassinato de um dos vilões de "Avenida Brasil", Paulo e Anastácia ficavam no escuro. Um apagão atingia a residência do casal bem no ápice da novela mais acompanhada dos últimos tempos.

- Relaxa, Paulo. Amanhã tem reprise...- comentou a mulher, já riscando um fósforo e colocando fogo em uma vela, estrategicamente guardada na gaveta do criado-mudo.

Desolado, o agricultor abriu a janela do sítio em que viviam na cidade de Borá, a 487 quilômetros de São Paulo e percebeu: o blecaute era geral. Com um binóculo, até enxergou raios de luz, mas que eram apenas da cidade vizinha.

Sem medo dos perigos que o mato reserva, o matuto pegou sua lanterna e saiu a pé em direção ao centro da cidadezinha, apontada pelo Censo 2010 como a de menor número de habitantes no país (apenas 805 moradores). Vai que, de repente, em algum boteco, havia energia?

- Mundo injusto! Vou ser a última pessoa do planeta a saber o fim desse negócio! A Carminha morreu ou não, desgraceira?

Não era possível que, após sete meses acompanhando a novela, ele perderia o grande desfecho da história. Paulo não merecia. Queria descobrir todos os segredos reservados para aquele momento. Era duro admitir, mas gostava mais de novela do que Anastácia, que a essa hora já devia estar dormindo.

Na estradinha de terra em que seguia, viu de longe um movimento estranho. Iluminando com a lanterna, viu um poste de luz atravessado entre as duas beiradas. Pior: um carro grande, prateado e aparentemente caro estava completamente amassado. Havia ocorrido uma colisão. E era por culpa dela que o povo tinha tido o sinal de suas TVs interrompidos.

Solidário, Paulo abriu a porta do automóvel e encontrou um homem de uns 40 anos, óculos na cara e camisa azul, encostado no airbag e desacordado. Com certo medo, cutucou o desconhecido, que logo acordou, completamente desnorteado.

- O que aconteceu? Você está bem? - perguntou Paulo.

- Só estou um pouco tonto, mas estou bem, sim. Vinha por essa estrada em direção ao meu sítio, que é aqui na cidade vizinha. Mas um cachorro apareceu na estrada, tentei desviar, derrapei e bati nesse poste.

- Entendo, que bom que está tudo bem. Qual o seu nome, amigo?

- Me chamo João...

Paulo, então, ajudou-o a descer do veículo e o ofereceu abrigo. Disse que era melhor ele passar a noite em sua casa para, amanhã, com a luz do sol, ele telefonar para o Seguro e resolver a situação. João fez que sim com a cabeça.

No caminho de volta, Paulo comentou com aquele homem sobre a novela que, por culpa dele, a cidade inteira havia perdido. Não que fosse muita gente, mas todos eram fãs do "Iô, iô, iô."

- Desculpe. E obrigado - disse João.

- Pelo abrigo? Imagina, não ia largar o senhor nessa escuridão sem ajuda...

- Sim, mas também pelos elogios à novela. Sou João Emanuel Carneiro, autor de "Avenida Brasil." Fico feliz que ela tenha mexido com a vida do senhor e de seus amigos. Peço desculpas pela barbeiragem. Estava vindo para o interior para ficar sozinho, longe da badalação do último capítulo. É um dia especial, queria apenas refletir e pensar nesse sucesso todo...- disse.

Já na sala do sítio, de frente para uma lareira que iluminava o ambiente, os dois viraram a noite conversando sobre a novela. Cheio de detalhes, João revelou tudo sobre o capítulo perdido. Paulo era o primeiro a saber quem matou o Max em Borá. Anastácia iria se surpreender quando acordasse.


quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Negócios de obituário

Nascido em São Gotardo, interior de Minas Gerais, em 20 de setembro de 1942, Roberto Machado tinha 70 anos. Empresário do ramo de persianas e cortinas, levava a sombra para a casa das pessoas. Bom pai e bom marido, deixou dois filhos, três netos, a esposa Glória e a cadelinha maltês Pink, de quatro anos. Além de um Ford Mustang Mach 1, ano 1973, vermelho com listras pretas. O grande amor de sua vida. Até a noite de ontem, quando sofreu um mal súbito.O enterro será hoje, às 14h, no cemitério do Centro.
Mustang Mach 1

Como de costume, Pascoal lia o obituário do maior jornal da cidade logo pela manhã. E, após alguns goles de café preto, emocionou-se por aquelas poucas linhas dedicadas ao mais quente defunto da região. Não por nutrir qualquer sentimento em relação ao desconhecido que, em sua imaginação, usaria cortinas em seu caixão. Mas pela oportunidade de negócio.

Um Mustang, senhores, acabara de ficar órfão de pai. E ele, apaixonado por carros, via ali uma ótima chance de adquirir a grande máquina Eleanor. Era esse o nome do carro no filme "Gone in 60 Seconds", filmado em 1974 e que, em 2000, teve um remake com outro Mustang, um Shelby GT500 ano 1967.

Se nos dias de hoje os internautas ficam ligados nas redes sociais à espera de promoções relâmpago com cupons de desconto ou em sites de compras coletiva, eram dos obituários que Pascoal gostava. A partir deles, já havia alugado ótimos e bem localizados apartamentos a preço de banana, comprado uma coleção inteira de selos por uma quantia irrisória, roupas de grife a valor de saldão e até se encontrado com uma antiga namorada de infância, após ler em ligeiras linhas que ela ficara viúva de um rico magnata.

A estratégia do malandro era em grade estilo. Choroso, aparecia no velório, abraçava filhos e viúva e se dizia um grande amigo daquele que partiu. Criativo, contava aventuras vividas pela dupla. Nessa tarde específica, inseriu o Mustang na maioria delas, dizendo que o carro era um grande elo da amizade entre os chapas.

Dias depois, aparecia na residência ainda em clima de funeral e fazia a sua proposta, bem abaixo do preço de mercado. A família, machucada e sem rumo, se negava a se desfazer do bem, mas o valor bruto, em dinheiro, dentro de uma maleta, acabava convencendo-os do contrário - geralmente por conta das dívidas deixadas pelo defunto.

Mais uma vez, Pascoal conseguia o que queria. Feliz e satisfeito, tirava onda com a morte dos outros. Mas também flertava com a sua. Lutando contra um câncer, queria ter tudo de valioso que outras pessoas haviam tido em vida, mas por preços acessíveis. Pascoal não sabia até quando tudo isso ia durar.

Amanhã bem cedo, a bordo de seu novo Mustang, planeja visitar o jornal da cidade. Quer conhecer o redator de obituários, contar a sua história, agradecer pelas informações e pedir que, quando falecer, nenhum de seus bens sejam citados nas tristes linhas. Tem medo de interesseiros.